Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

DIAL P FOR POPCORN

DIAL P FOR POPCORN

Brincar à imitação dá direito a Óscar?

É uma aflição que me dá este "The Imitation Game". Filme de Óscar que mais quer ser filme de Óscar não há. Todavia, não duvido que o Morten Tyldum lá tenha lutado contra todos esses instintos o mais que possa, porque o filme mostra-se muito mais do que o Harvey Weinstein merecia.

 

Por um lado, bastante para gostar e degustar, nomeadamente a melhor interpretação da Keira Knightley em muito tempo, a acertar todas as notas que o filme lhe pede e a emprestar muito necessário carisma e personalidade a uma personagem que construída por uma actriz com menos capacidades, ia acabar como ruído de fundo e uma história pouco conhecida e de inegável valor, que aborda um prisma diferente da II Guerra Mundial e, acima de tudo, com um personagem caricato e difícil de ler que acaba, de forma surpreendente, por ter um papel muito activo no desfecho de uma das grandes calamidades sócio-políticas do passado século.

 

Por outro lado, a quantidade ridícula de "imitações" de má espécie que o filme contém tira-me do sério, desde Cumberbatch a roubar truques ao Sherlock, o moço de "Downton Abbey" que deve ter-se enganado no set de gravações, o Matthew Goode a aperfeiçoar a arte de ser o Matthew Goode em tela grande, o Charles Dance a dosear o veneno que costuma dispensar ao seu Tywin Lannister, o Mark Strong em mais um papel em que não se sabe bem se é vilão, se é boa pessoa e sobretudo - o pior dos crimes - a primeira vez que vejo o Alexandre Desplat a reciclar material. Tira-se o trecho de abertura e o resto é uma amálgama de tudo aquilo que faz dele o maior compositor do século XXI (sim, tenho dito). O filme também pede emprestado umas dicas aos seus colegas britânicos contemporâneos, sobretudo a uma certa e respeitável película que venceu o prémio máximo da Academia há cinco anos, que tenta imitar à força toda - mas pelo menos fá-lo naquilo que esse filme é bom. De tão bem que imita, "The Imitation Game" não aprende a lição fundamental, sofrendo também do mesmo mal de "The King's Speech": tem um protagonista que é paradigmático de uma dicotomia (ou indecisão) do filme entre abordar mais especificamente - e mais aprofundadamente - o seu protagonista. Se em "The King's Speech" pouco se retira de George VI, em "The Imitation Game" temos um filme com um protagonista homossexual que tem medo de mostrar esse mesmo protagonista nesse ângulo. 

 

 

Resumindo: é uma aflição que me dá este "The Imitation Game". Um filme indubitavelmente sólido e um bom produto de entretenimento, muito arrumado e apresentável (impecável trabalho a todos os níveis por parte de praticamente toda a gente), prazeiroso e inteligente em vários momentos, mas que me deixa com um ataque de azia quando me lembro o que poderia ter sido esta história e esta personagem nas mãos de alguém mais temerário a escrever e a realizar.  

STILL ALICE* (ou o filme que deu o Óscar à Juli)

Há três anos escrevi um dos artigos mais visitados no antigo estaminé sobre esta maravilhosa artista que é Julianne Moore. Na altura disse:

"Uma actriz sem nada mais a provar, JULIANNE MOORE continua a mostrar, ano após ano, mesmo aos cinquenta e dois anos, por que razão é considerada uma das maiores actrizes da indústria e, diria até, de sempre."

 

Hoje reitero este apreço que tenho por ela, que mais dois anos volvidos, juntou ao seu naipe de cartas as interpretações em "Game Change" e sobretudo este ano em "Maps to the Stars" e "Still Alice", pelo qual futuramente será coroada como melhor actriz de 2014. Alice Howland, Havana Segrand, Cathy Whitaker, Laura Brown, Linda Partridge, Barbara Baekeland, Sarah Miles, Amber Waves, Marian Wyman, Carol White. Além de brilhantes retratos de mulheres especiais, todas partilharam a alma com a atriz que lhes deu vida: Julianne Moore, que faz o seu trabalho parecer espectacularmente fácil.

 

 

Não é fácil atravessar a ténue linha entre a farsa e a naturalidade quando se interpretam personagens com deficiências ou doenças. Julianne Moore fá-lo com a simplicidade e a precisão com que consegue tudo o resto. A sua Alice é indescritível, única, completa. Um ser humano com uma vitalidade e uma clareza que só uma actriz de imenso gabarito a poderia envolver de tanto amor, tanto afecto, tanta coragem, tanta solidão. A sua Alice tem uma vida cheia - e nós só a conhecemos já ela está a terminar. Um espírito imenso, inquebrável pelo declínio irreversível e fulminante provocado por esta terrível doença. 

 

Quando a abandonamos, Alice já quase não é "Alice" e o silêncio que perdura vale mais que mil palavras de um diálogo, deixando-nos visivelmente destroçados. A última vez que me senti tão comovido por uma interpretação que envolve esta magnitude de transformação física e psíquica envolvia uma octagenária (Emmanuelle Riva) no seu último suspiro de vida. Também aí o coração parte-se-nos ao ver uma mulher outrora independente e presente desaparecer perante os nossos olhos.

 

 

A profunda tristeza que nos assome é mais do que natural - o sufoco e desespero que Alice sente ao ver toda a sua história, todas as suas memórias, tudo aquilo que faz ela ser o que é, passa para o lado de cá do ecrã como uma valente bofetada. No bom sentido.

 

Compassivo, sensível e doce, "Still Alice" é um filme modesto, pequeno, com um objectivo muito bem definido, no qual sucede admiravelmente. Competentemente realizado, fotografado, editado e interpretado, poder-se-ia ambicionar que o filme quisesse mais para si próprio. Abordar melhor o papel do cuidador, as emoções e as tribulações que atravessam a cabeça do marido e dos filhos de Alice. Focar-se mais em outras pessoas em redor de Alice que não a sua família directa. O mundo parece fechado em "Still Alice" - e dado que Lisa Genova, autora do livro, procurava mostrar o lado do paciente, é mais que natural. O filme, seguindo o mesmo rumo, acaba por nos propiciar um verdadeiro espectáculo a solo de Julianne Moore. Penso que ninguém se terá importado.

 

Uma menção final para Ilan Eshkeri. Trabalho sólido há anos, a merecer subida de escalão para as grandes produções.

 

 

 

 

SNIPER AMERICANO, de Clint Eastwood

Cada tiro, cada melro, diz-se no nosso quintal.

 

bg05

 

E na realidade assim era o lendário disparo de Chris Kyle (Bradley Cooper), um sniper cuja pontaria lhe valeu o estatuto de herói americano e que desgraçadamente acabou morto por um "tiro perdido" de um veterano de guerra a poucos metros de sua casa. Um final inglório. Um spoiler desnecessário, talvez. Mas preciso de vos poupar o tempo precioso que eu perdi a ver este filme feito de tiros, patriotismo, tiros, patriotismo, tiros, América!!!, tiros, América!!!, tiros, tiros, bombas, tiros, America!!!. Em boa verdade, perdi a minha paciência para películas que se vendem aos fetiches do público americano e que esperam com isso sustentar o seu sucesso. Infelizmente, assim se resume o filme de Clint Eastwood. A interpretação de Bradley Cooper é engraçada (o melhor aspecto do filme), mas estive longe de sentir a tensão que, por exemplo, Kathryn Bigelow consegue emprestar em filmes deste género. A história de Sniper Americano contava-se em meia dúzia de minutos. E é por isso que não me vai tomar mais do que meia dúzia de palavras.

NIGHTCRAWLER, de Dan Gilroy

"I'd like to think if you're seeing me you're having the worst day of your life."

 

 

Deixem passar Jake Gyllenhaal. Por favor, deixem-no passar. Depois de me ter desiludido em Enemy (onde nem ele nem Denis Villeneuve perceberam muito bem o que estavam a fazer), o eterno Donnie Darko deixa um sério aviso à concorrência de Hollywood. Está um actor diferente, mais maduro e mais autêntico, parece-me. Uma carreira que esteve a um pequeno passo de cair num abismo sem retorno (lembro-vos que chegou a ser o Principe da Pérsia...) vê-o agora ressurgir com um novo e pungente fôlego, mais corajoso e a abraçar projectos mais ambiciosos.

 

 

Em NightcrawlerJake é a câmara que alimenta o voyeurismo humano pela tragédia, o desejo, quase febril e doentio, de ver o sangue sujar o nosso ecrã de televisão. Sozinho em Los Angeles, Louis Bloom (Jake Gyllenhaal) é um homem sombrio, obsessivo, tenso, com um olhar doentio, que absorve a informação gratuita da internet e procura a sua oportunidade em cada canto obscuro. Capaz de tudo para conseguir aquilo que idealiza, Louis começa a filmar e vender os acidentes mais brutais de LA com uma câmara de qualidade duvidosa, perseguindo o rasto deixado pelo caos e pela desgraça num velho carro a cair aos bocados.

 

 

Começa e não pára. Numa asceção quase meteórica, a ambição de Louis não tem limites. E em Nightcrawler, Dan Gilroy conta-nos como uma sociedade perdida pelo caótico poder do dinheiro e do exibicionismo, premeia e alimenta a obsessão doentia de um homem sem escrúpulos. O que Gyllenhaal dá ao argumento de Gilroy é muito mais do que uma grande interpretação. A força do argumento confunde-se com o poder da personagem e ambos se tornam indissociáveis. Um filme que passou ao lado dos grandes prémios de Hollywood, mas que certamente todos acabaram por espreitar. Tal e qual como o jornalismo voyeur que ninguém admite ver, mas do qual todos sabem sempre qualquer coisa.