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DIAL P FOR POPCORN

DIAL P FOR POPCORN

FORCE MAJEURE, de Ruben Östlund

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A culpa é um dos sentimentos mais complexos e desafiantes do cinema. Quem viu The Machinist (a obra onde Brad Anderson levou Christian Bale ao limite) facilmente percebe que, para se ser bem sucedido, a atmosfera claustrofóbica tem de saltar do ecrã e infetar o subconsciente do espectador. Ruben Östlund conseguiu fazê-lo. No cenário dos Alpes franceses, uma família sueca em férias debate-se com uma inesperada crise familiar. A dada altura o pai Tomas amaldiçoa o seu subconsciente, a sua reação impulsiva. Force Majeure é um exercício de reflexão que nos acompanha muito para lá das suas duas horas.

THE RAID, de Gareth Evans

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Fui, provavelmente, o último aficionado de histórias com pancada a ver os dois filmes que Gareth Evans conseguiu fazer com a meia dúzia de trocos que tinham ficado esquecidos no bolso de trás das calças. Pronto, no caso do segundo filme não foi exactamente assim, muito à custa do sucesso do primeiro. Vamos por partes.

 

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Em The Raid: Redemption, filme lançado em 2011, Rama é um policia novato que entra num edifício decrépito e infernal, onde o submundo da droga distorceu há muito as mais nobres regras sociais e regressou à primordial lei do mais forte. Na segunda parte desta história, estreada em 2014, (The Raid 2: Berandal), Gareth Evans utilizou com astúcia um orçamento mais recheado e conseguiu que, a sua sequela, superasse a qualidade do seu primeiro filme (coisa rara em cinema). Com uma longa metragem mais musculada, ambiciosa e complexa, Rama volta a ser o protagonista de uma missão (quase) impossível, um hitman disposto a tudo para desmantelar um cartel que controla a distribuição da droga nas ruas de Jacarta.

 

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Porque vale a pena ver The Raid? Porque, infelizmente, não é todos os dias que um filme de acção consegue ser mais do que meia dúzia de calmeirões a distribuir fruta. Gareth Evans escreve não só um argumento inteligente, como complementa a sua história com cenas de ação muito bem trabalhadas, conseguindo um equilibrio sempre dificil entre aquilo que é essencial para adornar o espetáculo da acção, com aquilo que é perfeitamente gratuito e dispensável. Definitivamente Evans sabe aquilo que está a fazer. Em 2018 deverá chegar o terceiro filme da saga.

FEHÉR ISTEN, de Kornél Mundruczó

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Podia ter colocado o título internacional. Mas assim só lê quem está mesmo com vontade de conhecer um dos filmes que mais impressionou Cannes no ano passado. Habitualmente, os filmes sobre/com cães só têm dois finais possíveis: ou o cão morre ou o cão vive. Em ambas, o público chora.

 

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No entanto, o filme de Mundruczó é mais do que isso. Consegue que o espectador se sente de costas direitas na cadeira do cinema. Faz nascer, dentro da cabeça do espectador, uma interrogação, um "espera lá...". Somos uma raça habituada a chegar, ver e vencer. A definir as regras do jogo. E a nossa prepotência é, para nós, um dado adquirido. Está tão enraizada e é tão natural que, quando alguém decide alterar as regras do jogo, chocamo-nos perante tamanha ousadia. É com estas ideias preconcebidas que Mundruczó transforma White God num filme vencedor.

 

Não peguem neste filme à espera que um Marley morra no fim. Isso é na porta ao lado.

Brincar à imitação dá direito a Óscar?

É uma aflição que me dá este "The Imitation Game". Filme de Óscar que mais quer ser filme de Óscar não há. Todavia, não duvido que o Morten Tyldum lá tenha lutado contra todos esses instintos o mais que possa, porque o filme mostra-se muito mais do que o Harvey Weinstein merecia.

 

Por um lado, bastante para gostar e degustar, nomeadamente a melhor interpretação da Keira Knightley em muito tempo, a acertar todas as notas que o filme lhe pede e a emprestar muito necessário carisma e personalidade a uma personagem que construída por uma actriz com menos capacidades, ia acabar como ruído de fundo e uma história pouco conhecida e de inegável valor, que aborda um prisma diferente da II Guerra Mundial e, acima de tudo, com um personagem caricato e difícil de ler que acaba, de forma surpreendente, por ter um papel muito activo no desfecho de uma das grandes calamidades sócio-políticas do passado século.

 

Por outro lado, a quantidade ridícula de "imitações" de má espécie que o filme contém tira-me do sério, desde Cumberbatch a roubar truques ao Sherlock, o moço de "Downton Abbey" que deve ter-se enganado no set de gravações, o Matthew Goode a aperfeiçoar a arte de ser o Matthew Goode em tela grande, o Charles Dance a dosear o veneno que costuma dispensar ao seu Tywin Lannister, o Mark Strong em mais um papel em que não se sabe bem se é vilão, se é boa pessoa e sobretudo - o pior dos crimes - a primeira vez que vejo o Alexandre Desplat a reciclar material. Tira-se o trecho de abertura e o resto é uma amálgama de tudo aquilo que faz dele o maior compositor do século XXI (sim, tenho dito). O filme também pede emprestado umas dicas aos seus colegas britânicos contemporâneos, sobretudo a uma certa e respeitável película que venceu o prémio máximo da Academia há cinco anos, que tenta imitar à força toda - mas pelo menos fá-lo naquilo que esse filme é bom. De tão bem que imita, "The Imitation Game" não aprende a lição fundamental, sofrendo também do mesmo mal de "The King's Speech": tem um protagonista que é paradigmático de uma dicotomia (ou indecisão) do filme entre abordar mais especificamente - e mais aprofundadamente - o seu protagonista. Se em "The King's Speech" pouco se retira de George VI, em "The Imitation Game" temos um filme com um protagonista homossexual que tem medo de mostrar esse mesmo protagonista nesse ângulo. 

 

 

Resumindo: é uma aflição que me dá este "The Imitation Game". Um filme indubitavelmente sólido e um bom produto de entretenimento, muito arrumado e apresentável (impecável trabalho a todos os níveis por parte de praticamente toda a gente), prazeiroso e inteligente em vários momentos, mas que me deixa com um ataque de azia quando me lembro o que poderia ter sido esta história e esta personagem nas mãos de alguém mais temerário a escrever e a realizar.  

STILL ALICE* (ou o filme que deu o Óscar à Juli)

Há três anos escrevi um dos artigos mais visitados no antigo estaminé sobre esta maravilhosa artista que é Julianne Moore. Na altura disse:

"Uma actriz sem nada mais a provar, JULIANNE MOORE continua a mostrar, ano após ano, mesmo aos cinquenta e dois anos, por que razão é considerada uma das maiores actrizes da indústria e, diria até, de sempre."

 

Hoje reitero este apreço que tenho por ela, que mais dois anos volvidos, juntou ao seu naipe de cartas as interpretações em "Game Change" e sobretudo este ano em "Maps to the Stars" e "Still Alice", pelo qual futuramente será coroada como melhor actriz de 2014. Alice Howland, Havana Segrand, Cathy Whitaker, Laura Brown, Linda Partridge, Barbara Baekeland, Sarah Miles, Amber Waves, Marian Wyman, Carol White. Além de brilhantes retratos de mulheres especiais, todas partilharam a alma com a atriz que lhes deu vida: Julianne Moore, que faz o seu trabalho parecer espectacularmente fácil.

 

 

Não é fácil atravessar a ténue linha entre a farsa e a naturalidade quando se interpretam personagens com deficiências ou doenças. Julianne Moore fá-lo com a simplicidade e a precisão com que consegue tudo o resto. A sua Alice é indescritível, única, completa. Um ser humano com uma vitalidade e uma clareza que só uma actriz de imenso gabarito a poderia envolver de tanto amor, tanto afecto, tanta coragem, tanta solidão. A sua Alice tem uma vida cheia - e nós só a conhecemos já ela está a terminar. Um espírito imenso, inquebrável pelo declínio irreversível e fulminante provocado por esta terrível doença. 

 

Quando a abandonamos, Alice já quase não é "Alice" e o silêncio que perdura vale mais que mil palavras de um diálogo, deixando-nos visivelmente destroçados. A última vez que me senti tão comovido por uma interpretação que envolve esta magnitude de transformação física e psíquica envolvia uma octagenária (Emmanuelle Riva) no seu último suspiro de vida. Também aí o coração parte-se-nos ao ver uma mulher outrora independente e presente desaparecer perante os nossos olhos.

 

 

A profunda tristeza que nos assome é mais do que natural - o sufoco e desespero que Alice sente ao ver toda a sua história, todas as suas memórias, tudo aquilo que faz ela ser o que é, passa para o lado de cá do ecrã como uma valente bofetada. No bom sentido.

 

Compassivo, sensível e doce, "Still Alice" é um filme modesto, pequeno, com um objectivo muito bem definido, no qual sucede admiravelmente. Competentemente realizado, fotografado, editado e interpretado, poder-se-ia ambicionar que o filme quisesse mais para si próprio. Abordar melhor o papel do cuidador, as emoções e as tribulações que atravessam a cabeça do marido e dos filhos de Alice. Focar-se mais em outras pessoas em redor de Alice que não a sua família directa. O mundo parece fechado em "Still Alice" - e dado que Lisa Genova, autora do livro, procurava mostrar o lado do paciente, é mais que natural. O filme, seguindo o mesmo rumo, acaba por nos propiciar um verdadeiro espectáculo a solo de Julianne Moore. Penso que ninguém se terá importado.

 

Uma menção final para Ilan Eshkeri. Trabalho sólido há anos, a merecer subida de escalão para as grandes produções.

 

 

 

 

NIGHTCRAWLER, de Dan Gilroy

"I'd like to think if you're seeing me you're having the worst day of your life."

 

 

Deixem passar Jake Gyllenhaal. Por favor, deixem-no passar. Depois de me ter desiludido em Enemy (onde nem ele nem Denis Villeneuve perceberam muito bem o que estavam a fazer), o eterno Donnie Darko deixa um sério aviso à concorrência de Hollywood. Está um actor diferente, mais maduro e mais autêntico, parece-me. Uma carreira que esteve a um pequeno passo de cair num abismo sem retorno (lembro-vos que chegou a ser o Principe da Pérsia...) vê-o agora ressurgir com um novo e pungente fôlego, mais corajoso e a abraçar projectos mais ambiciosos.

 

 

Em NightcrawlerJake é a câmara que alimenta o voyeurismo humano pela tragédia, o desejo, quase febril e doentio, de ver o sangue sujar o nosso ecrã de televisão. Sozinho em Los Angeles, Louis Bloom (Jake Gyllenhaal) é um homem sombrio, obsessivo, tenso, com um olhar doentio, que absorve a informação gratuita da internet e procura a sua oportunidade em cada canto obscuro. Capaz de tudo para conseguir aquilo que idealiza, Louis começa a filmar e vender os acidentes mais brutais de LA com uma câmara de qualidade duvidosa, perseguindo o rasto deixado pelo caos e pela desgraça num velho carro a cair aos bocados.

 

 

Começa e não pára. Numa asceção quase meteórica, a ambição de Louis não tem limites. E em Nightcrawler, Dan Gilroy conta-nos como uma sociedade perdida pelo caótico poder do dinheiro e do exibicionismo, premeia e alimenta a obsessão doentia de um homem sem escrúpulos. O que Gyllenhaal dá ao argumento de Gilroy é muito mais do que uma grande interpretação. A força do argumento confunde-se com o poder da personagem e ambos se tornam indissociáveis. Um filme que passou ao lado dos grandes prémios de Hollywood, mas que certamente todos acabaram por espreitar. Tal e qual como o jornalismo voyeur que ninguém admite ver, mas do qual todos sabem sempre qualquer coisa.

WHIPLASH, de Damien Chazelle

À Birdman:

"WHIPLASH, ou O Inesperado Narcissismo de um Artista" 

 

 

Eu gosto de um bom filme sobre o sacrifício na arte. E gosto de jazz. Não gosto, contudo, quando um filme que tanto é aclamado por abordar estes temas não tem uma ideia que de jeito se aproveite sobre eles, nem sobre originalidade, criatividade, talento ou inspiração. Um filme que ironicamente celebra a moral de que ser um sacana intratável é que resolve as situações e que apresenta uma ideia tão distorcida quanto parva de um vale tudo entre um artista torturado (Milles Teller a contrariar registo recente e a fazer de choninhas) e um louco sadomasoquista desde que no final o rapaz chegue "lá" (onde, especificamente, não importa). 

 

Olhem para o esforço do gajo. Tanto suor, tanta bolha, tanto sangue. Não vai aguentar, não tem hipótese. Olha para aquele mentor, que sádico, que demoníaco, que tortura física e psicológica, não se faz. E olha esta música tão acelerada. E olha para ele a dar-lhe cada vez mais rápido. Até a mim me está a dar uma taquiarritmia. Só que não.

 

 

Cinco minutos do JK Simmons (que está bem, de facto, embora só lhe dêem uma nota para entoar ao longo de todo o filme) e já dá para tomar o gosto a todo o arco da personagem. Claramente que o Sr. "ninguém estraga a minha banda" faria precisamente isso só porque acredita que um dos seus alunos pode ir mais além. Plausibilidade. Um grande problema deste "Whiplash".

 

(esperem, ainda estou a palpitar com a sequência do moço a praticar para o grande espectáculo final, a fazer inveja à sequência de treino do "Rocky"...Também tocou a "Eye of the Tiger" lá pelo meio dos tambores e dos pratos a serem percutidos a alta velocidade ou fui eu que imaginei coisas? Não?)

 

E que dizer de uma cena na transição do segundo acto que é tão ridícula quanto surreal que só serve para repisar - uma vez mais, porque as vezes que já tinham sido intuídas ao longo do filme não eram suficientes - que o rapaz é capaz de morrer pela sua arte. Que dizer ainda da introdução da personagem feminina que só serve para o filme poder cumprir uma checklist de eventos narrativos (bem como o pai) para poder avançar o enredo (momento! momento! momento! - uma manta de retalhos de cenas críticas, coladas com a perfeição de um relógio suíço, disfarçadas na coesão pelo conteúdo musical que ensurdece até o mais atento dos espectadores). Que dizer, só para terminar, daquela cena final (depois das múltiplas vezes que revirei os olhos por não conseguir conter mais o meu cepticismo) que só pode ser possível no mundo de um esquizofrénico? É que no mundo real não é seguramente.

 

 

Se calhar o problema é meu por não me ter embrenhado na experiência. Style over substance. Será isso? Este Chazelle parece que andou a ver como imitar o "Black Swan" e outros semelhantes. Até técnicas semelhantes às do Aronofsky usa. Só que onde este usa a iconografia e simbolismo para acrescentar profundidade à cada vez maior deteroriação psíquica da sua protagonista, Chazelle aplica para relembrar (como se fosse preciso) que o esforço do rapaz na sua busca pela perfeição está a ser demasiado para ele aguentar. Uma vira louca, o outro colapsa da ansiedade e cansaço. Nem comparemos a riqueza estilística de ambas as abordagens.

 

No final do dia, pouco sumo consegui retirar do que "Whiplash" quer dizer, mesmo sobre a sua própria história do custo de ser uma lenda. O que é, afinal, ser grande? Não deu para perceber. Não desminto que o filme é interessante, todavia tentar fazer dele uma obra prestigiante, sobretudo quando nos lembramos da queda virtiginosa da plausibilidade da película quanto mais o filme progride e quando, no fundo, o filme pouco mais parece do que a curta-metragem que lhe deu origem em loop... É esticar a corda.

GONE GIRL, de David Fincher

No cinema há poucas coisas melhores do que um bom filho da mãe.

 

 

Gone Girl tem, muito provavelmente, o melhor argumento americano de 2014. Eu ainda não vi tudo o que anda por aí, ainda há algumas boas histórias por estrear, mas poucas vão desafiar tanto um espectador como o incrível romance de Gillian Flynn. Um sucesso nas livrarias que Fincher transportou para o cinema.

 

 

Uma relação apaixonante, ardente, um casal eletrizante, de uma cumplicidade hipnótica, magnética, deixa tudo para trás na cidade que os juntou, Nova Iorque, para se refugiar no esquecido Missouri, terra natal de Nick Dunne (Ben Affleck). O que para um foi um passo em frente, para outro foi o principio do fim. Amy Dunne (Rosamund Pike) contou cada segundo, conheceu cada recanto da sua nova casa e habituou-se a viver na solidão. Até ao dia em que se fartou de ser elemento de decoração.

 

 

Os problemas de Nick começam no momento em que se esquece da mulher por quem se apaixonou. No cinema há poucas coisas melhores do que um bom filha da mãe. E um filho da mãe não se deixa enganar. Quando Nick chega a casa e se apercebe que a sua mulher desapareceu não imagina o sarilho em que está metido. David Fincher brilha, Gillian Flynn (que adapta o seu romance à grande tela) brilha, Ben Affleck complementa Rosamund Pike (a única nomeação para Oscar que o filme conseguiu - triste academia).

Vertiginoso. Claustrofóbico. Em Gone Girl não existem limites.